A primeira vez que me apercebi que algo não estava bem com o meu cérebro foi em 2003, depois de ver o filme As Horas, com aquele célebre diálogo entre a Virginia e o marido na estação de comboios.
Virginia Woolf suicidou-se, entrando num rio com os bolsos cheios de pedras. Não era maluca, não tinha um pirolito a menos, nem um parafuso a mais, não padeceu de falta de bater punho, de fazer pela vida, e aquilo de que ela tinha não cabe na linguagem quotidiana. Virginia Woolf sofria de transtorno bipolar. Não tem a visibilidade de uma espondilite anquilosante, mas também aleija.
Um dos problemas da depressão e das doenças mentais começa logo na linguagem. Usamos a mesma palavra para identificar a tristeza de ter arranhado o carro no estacionamento e para identificar a tristeza dos cinco segundos antes do suicídio.
A semântica da depressão que uma semana inteira de chuva provoca não é a mesma da depressão em que o nosso cérebro não consegue funcionar bem.
Todos temos, uns mais que outros, uma dificuldade em lidar com o que não é visível, com o imaterial. Este é o primeiro ponto. E o segundo tem a ver com a ignorância na área da neurociência. Ou seja, se por si só, é uma ciência em que os especialistas têm muitos pontos de interrogação, é natural que os não especialistas sintam uma perplexidade ainda maior. E depois há pessoas que não lidam bem com as perplexidades e arrumam a coisa com a linguagem quotidiana (que hoje em dia deixou de ser popular e passou a ser de um positivismo filosófico bacoco pró-empreendedorista). Assim se conclui que quem está deprimido é porque quer, é porque não sabe fazer pela vida.
Temos um amigo que está deprimido e convidamo-lo para jantar e, no fim, queremos ver resultados, ou seja, esperamos que o nosso amigo esteja menos triste. Só que o volume da situação nada tem a ver com a pinturas automóveis arranhadas e "por acaso eu até conheço um bate-chapas que te faz um jeitinho por isso".
É química, senhores. É uma questão de química.
Se os meus amigos e familiares ficam exasperados e frustrados por me verem deprimida há quase uma década? Ficam. Mas o que não passa pela cabeça de quase todos é que a minha frustração é multiplicada por mil, porque, como dizia a Virginia Woolf no filme, se as pessoas vivem com a minha nuvem escura e o medo da minha extinção, também eu, sobretudo eu, vivo com ela e que eu, e só eu, me debato sozinha no escuro, no escuro cerrado, ao fim do dia, a ponderar subir as escadas para ir dar comida ao gato ou descê-las e ligar o carro na garagem com o portão fechado. Mas desta parte ninguém sabe, porque não vale a pena acrescentar preocupações. Além disso far-me-ia parecer estúpida, no sentido em que sou tão desprovida de inteligência que nem sequer consigo ver que mais vale ir dar comida ao gato. Porque só alguém profundamente atrasado é que põe uma questão dessas em cima da mesa. Como se eu tivesse um QI de 60 e, tendo eu mais do dobro, não me apetece passar por néscia.
E então como é que se vive assim?
Aprende-se devagarinho. Vai-se conhecendo as pastilhas, os seus efeitos positivos e os adversos. Tenho momentos bons em que a química casa bem com o meu corpo durante uns tempos. Vai-se acertando a dose aqui e ali. O médico ajusta quando me vê melhor, depois o meu cérebro relapsa.
Não é fácil aceitar que se tem uma condição médica mais ou menos crónica.
Também tenho uma hérnia discal lombar. Não posso, por exemplo, fazer zumba, jogging e outros desportos de impacto, porque isso são coisas para me porem a analgésicos e fisioterapia durante uns tempos. Mas isso não causa estranheza (e não é por conseguir subir ligeirinha uma serra, por caminhos bravios).
Aquilo que custa é que a medicação que a P. terá de fazer para o resto da vida por causa da tiróide é normal, mas que os antidepressivos são "essa merda de que não te consegues livrar". Que marcar uma consulta com a endocrinologista é uma coisa e marcar uma com o psiquiatra é outra, porque "se tu fizesses isto, e assim e assado, e aquilo, e mais outro tanto, livravas-te dessas merdas que só enriquecem os laboratórios".
E já experimentaste acupuntura? E Reiki? E a meditação...?
Isso e um chazinho que se vende na zona saúde do continente e punhas-te fina.
E apanhar sol, rapariga, precisas é de apanhar sol. E de sair, beber uns copos e comer uns petiscos com os amigos que isso é a melhor cura.
Claro que sim! Umas moelas e um tinto alentejano em boa companhia são a cura para a depressão, o alzheimer, o parkinson e a esclerose múltipla.
Ah... a depressão é coisa de gente que não sabe apreciar a vida. Sim, sim... E a esclerose múltipla é uma coisa para preguiçosos que querem deslocar-se de cadeira de rodas e ter quem lhes dê banhinho.
Portanto, quando quando vejo que o gato corre o risco de ficar sem comida, uso um dos números mais importantes da minha lista e faço a medicação.
Fiz um voto de nunca mais contar aos amigos o que tomo ou deixo de tomar, se fui ou não fui ao psi.
Vou muitas mais vezes do que eles pensam e não vou tantas como precisava porque a saúde mental é dispendiosa. Por exemplo, na penúltima vez, gastei 130 euros e o medimento não resultou.
Quando estou bem, pressentem logo, puxam-me e eu vou sem dificuldade, porque o mundo parece fazer algum sentido e eu não guardo rancores (prefiro guardar dinheiro para viajar). É uma animação pegada, porque sou boa moça, de trato fácil, com sentido de humor, sempre pronta a dizer as coisas mais inteligentes e significativas para aumentar as alegrias ou para sossegar as dores dos outros porque conheço bem o sofrimento humano, do direito e do avesso.
Quando não estou bem, volto a surgir aos seus olhos como uma atrasada (mental?) que não sabe orientar a sua vida. E fico longe deles, porque estou doente e porque não me apetece explicar-me. Quem precisa de explicações não as vai entender e quem as compreende não sente falta delas.
Ainda assim, apesar do cérebro ser o órgão com mais descobertas a serem
feitas pelos cientistas, sinto-me grata por não ter vivido no tempo na
Virginia Woolf. E o meu gato também agradece. :)